
Meu
marido era um estancieiro impiedoso. Fui obrigada a casar com ele ainda
adolescente e poucos anos depois dei a luz a uma criança parecida até demais
com o pai. Apesar da riqueza que herdei, o homem não me tratava com respeito e
nem me fazia feliz. A atenção de meu esposo era unicamente para nosso filho, um
cavalo baio e um escravo. O menino, por quem nos referíamos somente como
Negrinho, era novo, porém ágil e muito habilidoso com os animais.
Certa manhã, o estancieiro
discutia com um vizinho. Os dois eram donos dos cavalos mais rápidos da região
e argumentavam ferozmente sobre qual cavalo seria o mais veloz. Foi marcada a
corrida: em cinco dias, os dois iriam até a pista disputar o título.
E assim, a cidade toda se
reuniu para torcer e apostar. O Negrinho, que correria por meu marido, tremia
em cima do animal. Ao redor, a torcida fazia seus lances e os valores eram
extremamente altos. Foi dada a largada. Os dois mantinham-se lado a lado por
quadras e mais quadras. Até a reta
final, aonde o cavalo baio que Negrinho conduzia assustou-se, dando tempo
suficiente para seu oponente sair vitorioso.
Meu esposo pagou todas as
altas apostas. Seu orgulho, porém, não permitiria que a situação passasse em
branco; alguém teria que pagar. Chamou, então, o Negrinho. Levou-o até o campo,
e apesar de não tê-lo seguido, ouvi de longe o choro do escravo. Mas também, eu
nem precisava. Quando chegou em casa gabava-se castigo que havia aplicado ao
menino. “Trinta dias e trinta noites
cuidando dos cavalos e ainda dezenas de chibatas” ele ria. Tudo que eu me
limitava a fazer era olhar pela janela e, durante noite, rezar secretamente
pelo Negrinho.
Pois se passaram dias e
noites e o fim do castigo estava chegando. Até a manhã que acordei com o galo
cantando e choro histérico da criança. Os cavalos haviam fugido. Meu filho foi
pessoalmente rir da desgraça e voltou pronto para contar ao pai a notícia. Irritado,
meu marido mandou novamente dar uma surra no garoto, e quando a noite chegou,
ordenou que só voltasse quando tivesse todos os cavalos.
Um pouco antes de partir,
chamei Negrinho sem que ninguém percebesse. Acendendo uma vela branca, falei ao
menino:
- Reze
a Nossa Senhora, madrinha dos que não a tem. – ele balançou a cabeça e saiu.
Passei
a noite acordada, até que no ponto em que a lua estava mais alta, o escravo
vinha trotando no baio com todos os outros cavalos atrás. Só então dormi em
paz.
Mas quando acordei na
manhã do dia seguinte, meu filho gritava animadamente que os cavalos haviam
fugido novamente. E todos nós saímos de casa ainda usando pijamas checar o que havia
acontecido. Deparamo-nos com Negrinho chorando, sozinho na grama verde. Novamente
meu marido mandou-lhe dar uma surra, e fui obrigada a ouvir os gritos cada vez
mais baixos, até que pareceram cessar. “Mandei
joga-lo em um formigueiro. Finalmente aquelas pragas serviram para alguma coisa”,
dizia o estancieiro quando se sentou à mesa para a ceia.
Durante as três noites em
que meu cruel esposo tinha pesadelos, eu rezei pela alma do Negrinho. E prometi
a Nossa Senhora que se o poupasse eu iria fugir, tomar o controle da minha vida
e abandonar o estancieiro. Foi na quarta manhã que ele decidiu ver o que
sobrava do corpo escravo. Atrás do enorme formigueiro, o menino limpava o resto
de terra dos cabelos, a pele perfeita, todas as feridas curadas. E ao seu lado,
o baio seguido de todos os outros cavalos negros. Ainda tinha a Virgem, com uma
capa azul, a cor da pureza biblicamente, parada junto ao Negrinho.
A notícia se espalhou com
velocidade alarmante. Mas não tive tempo de perguntar o que achavam sobre toda
essa história. Quando minha família acordou, não havia qualquer sinal de que eu
já havia morado ali. Porque na madrugada daquela noite, eu acendi uma vela e
pedi a Nossa Senhora e ao Negrinho que me ajudasse a achar meu lugar.